segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Conto de Marcelo Pirani

                                                          Helena


As coisas nunca mais haviam sido as mesmas desde a morte de Helena. Nada mais fazia muita diferença. Luís não sentia mais vontade de sair, não tinha mais ânimo para fazer nada, e os poucos amigos que ainda o viam eram aqueles que insistiam em visitá-lo, mesmo que ele não parecesse gostar das visitas.

Helena fora a sua razão de viver. Sem ela, vida ou morte eram uma coisa só, um vazio insuportável. A única maneira que Luís tinha de tolerar esse vazio era anulando-se também. Se ele pudesse acreditar que ela estaria esperando do outro lado, teria tentado segui-la. No entanto, sendo um ateu fervoroso, e não estando mais exatamente vivo, ele continuava neste mundo. Dava menos trabalho do que tentar o suicídio, e algum dia a morte viria mesmo buscá-lo, então para que pressa? Não fazia diferença nenhuma, não mais.

Que tipo de esperança havia num mundo onde alguém podia ser tirado de outra pessoa daquela maneira brutal? Que sentido poderia ter a vida, se ela podia ser interrompida sem aviso, no seu próprio auge, e de forma tão absurda? Pois a morte de Helena não havia sido natural. Aliás, tinha sido o tipo mais antinatural de morte possível. Helena fora assassinada.

Como um pássaro atraído pelos faróis de um carro em alta velocidade, a mente de Luís insistia em voltar aos acontecimentos que haviam destruído sua vida tão completamente quanto o carro teria feito com o pássaro. Quantos anos fazia? Cinco? Dez? Doze? Ou mais? Para Luís, era como se fosse a noite anterior. Pior do que isso, era como se estivesse acontecendo naquele exato momento, a cada vez que ele recordava. E mesmo assim, ele não conseguia bloquear as lembranças.

Sua última conversa com Helena havia sido uma briga. Isso era o que doía mais. Eles tiveram uma discussão feia, que terminara com Luís saindo intempestivamente de casa. Se soubesse o que aconteceria em sua ausência... Mas não havia como saber, ninguém jamais espera o tipo de loucura que estava para ocorrer.

Enfim, ele havia andado sem destino certo pelas ruas, os pensamentos atropelando uns aos outros, mas todos girando em torno do mesmo tema. Helena nem mesmo negara a infidelidade, nem uma só vez. Em suas próprias palavras, “Isso é tão absurdo que eu nem vou perder tempo negando! Acredite naquilo que você quiser, Luís! E faça o que quiser a respeito, também.”

E o que ele quisera fazer a respeito? De início, pensara em conseguir um quarto de hotel, esfriar a cabeça e voltar para casa somente no dia seguinte, mas essa idéia lhe pareceu absurda depois de um tempo. Sabia que não conseguiria dormir, nem acalmar-se. E se ela estivesse dizendo a verdade? E se as coisas não fossem bem como ele imaginara? Sempre fora um homem ciumento, e mesmo assim Helena nunca havia lhe dado motivos para suspeita. Por outro lado, não seria isso por si só um motivo de suspeita?

Não havia jeito, ele pensara. Teria que voltar para casa, tentar acalmar-se e continuar a conversa com Helena, tentar ouvir seu lado da história, entender. E fora isso mesmo o que ele fizera. Voltara correndo para casa, já pronto para perdoar a esposa, pronto para aceitar qualquer história que ela quisesse contar, por mais absurda que parecesse. Qualquer coisa seria melhor do que aquela sensação de estar cometendo uma injustiça.

As lembranças de Luís perdiam sua nitidez após o momento em que chegara em casa e encontrara a porta dos fundos aberta. A última cena da qual se recordava com detalhes era o machado caído na soleira, com a lâmina recoberta de um vermelho viscoso. A partir daí, tudo era nebuloso, uma névoa rubra da qual se destacavam apenas vultos mal formados:

O sangue estava por toda parte, claro. Assim como Helena. O ataque fora de uma selvageria indescritível, e era apenas natural que a mente de Luís bloqueasse as imagens do resultado. Ele se lembrava confusamente – mas mesmo assim melhor do que gostaria – de não ter conseguido reconhecer sua esposa nos pedaços espalhados pela cozinha e em parte da sala de jantar adjacente. O resto, além de incerto, era de qualquer maneira irrelevante.

E assim havia sido sua vida nos últimos anos: um único borrão onde quase nada fazia sentido, procurando não pensar muito mas sempre lembrando-se daquela noite, e de como tudo poderia ter sido diferente se ele não houvesse sido tão ciumento, não houvesse discutido, não houvesse saído de casa daquela maneira intempestiva... na pior das hipóteses, teria sido feito em pedaços junto com Helena, e não estaria agora naquela situação deplorável.

Não que sua vida fosse difícil... pelo menos, não no sentido de dificuldades financeiras, ou físicas. Pelo contrário, tinha tudo de que precisava. Que era bem pouco, na verdade. Um teto, roupas, refeições, apenas o básico para manter seu corpo funcionando e sua mente alerta.

Nem mesmo ele sabia o porquê de manter-se assim, vivo e consciente. A única coisa que passava por sua cabeça eram flashes daquela noite maldita. A discussão violenta causada por seu ciúme, sua saída intempestiva da casa, a ronda pelas ruas com a cabeça cheia, a decisão de voltar... e então a porta entreaberta, o machado caído no mesmo lugar onde fora jogado displicentemente após servir sua função, sua esposa espalhada pela cozinha e sala de jantar... só conseguia escapar desses flashes desligando-se completamente. Ele, que fora tão ativo no passado, agora dormia a maior parte do tempo.

Poucos amigos vinham visitá-lo, e ele não se dava o trabalho de conversar com eles, ou mesmo de responder às poucas perguntas que lhe eram feitas. Na verdade, nem mesmo ouvia o que lhe diziam. Aqueles amigos eram parte de uma outra vida. Pertenciam ao círculo social de um homem ativo, sem maiores preocupações, saudável... um homem casado, não esse viúvo de agora. Um homem, até onde isso é possível, feliz.

Diziam que ele estava catatônico. Só podia haver algum engano. Até onde Luís soubesse, catatonia era a impossibilidade de perceber o mundo em volta. E ele percebia, sim, tudo o que ocorria ao seu redor. Só que nada daquilo lhe importava, nada era relevante. Nada merecia qualquer demonstração de vida de sua parte.

Ah, ele ouvia as conversas ao seu redor, sim. Via tudo o que se passava. Sabia o que falavam sobre ele, sobre seu estado, sobre as poucas chances de recuperação que tinha... se soubessem que ele poderia sair daquele aparente estado vegetativo a qualquer momento, apenas não o fazendo porque não tinha nenhum motivo para tal, os homens e mulheres uniformizados que atendiam a todas as suas necessidades certamente teriam muito menos boa vontade.

Se soubessem que ele era perfeitamente capaz de ver, ouvir e falar, talvez não lhe alimentassem mais, e ele poderia morrer de inanição. Talvez deixassem de lhe dar banho, e ele provavelmente estaria fedendo insuportavelmente em menos de uma semana. Seriam os homens e mulheres de uniforme tão cruéis a ponto de deixar que chegasse a um ponto extremo, só porque ele era fisicamente capaz? Chegariam mesmo, se soubessem que seu estado catatônico era uma opção, a jogá-lo para fora daquele lugar tranqüilo, daquele quarto tão confortável onde ele esperava um dia morrer? Não, não chegariam a tanto.

Mesmo assim, sempre é melhor estar seguro do que arrependido, portanto Luís preferia não dar nenhuma mostra de seu estado real. Deixava os homens e mulheres uniformizados acreditarem naquilo que lhes era mais conveniente. Qualquer coisa para continuar ali. E depois, não era assim tão difícil, para ele, fingir ser um vegetal. Na verdade, a diferença era praticamente nenhuma.

A única parte difícil era ter que ouvir as mentiras. Nesses momentos, ele quase traía seu segredo. Felizmente, o assunto era pouco comentado, mas de vez em quando algum amigo seu, durante uma visita, comentava com o homem ou mulher de uniforme que sempre estava presente no quarto algo sobre ser incapaz de imaginar que Luís pudesse mesmo ter feito aquilo. Ou então a conversa era entre dois uniformes, e nesses casos as palavras eram mais explícitas. Falavam sobre a discussão feroz que ele tivera com a esposa, sobre o momento em que voltara à casa, sobre o que vira ao chegar lá, sobre a selvageria do ataque, sobre impressões digitais no cabo do machado... e balançavam a cabeça, como se sentissem pena do pobre louco condenado do qual tomavam conta.

Nesses momentos, Luís quase traía seu disfarce. E sentia-se realmente capaz de matar alguém... novamente? Então olhava para as próprias mãos, como se enxergasse nelas o machado que fizera sua esposa em pedaços. Pensava no quanto a amava, e em como sentira-se magoado com a traição que tinha certeza que ela cometera...

E então, invariavelmente, sua mente recusava-se a continuar, ele caía novamente em um estado letárgico e desabava na cama. Nessas ocasiões, dormia antes mesmo de encostar a cabeça no travesseiro. E sonhava com Helena, viva e inteira em seus braços, antes de acordar novamente no inferno.

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